A controvertida reforma da rede municipal de ensino anunciada pela prefeitura deverá entrar em vigor no próximo ano. De seu sucesso depende o futuro de quase 1 milhão de alunos da capital
Trinta e quatro rostinhos atentos mantêm os olhos fixos na lousa. Do lado esquerdo do quadro, a professora Gislene Aparecida Rodrigues escreve a lição do dia: pontuação. Do lado direito, uma agenda indica os afazeres da turma para a semana seguinte. Quando está em ação, Gislene mantém um tom militar. “Vamos, agiliza! Anda, preenche o cabeçalho”, diz com firmeza. A professora não admite apelidos, xingamentos, bolinha de papel voando e criança circulando pela classe em horário inapropriado. Dispara uma pergunta atrás da outra. Várias mãos se levantam no meio da sala. Os alunos do 4º ano do ensino fundamental, com cerca de 9 anos, disputam a vez de responder primeiro. No meio de uma explicação, a professora enfatiza com seu vozeirão uma ou outra palavra. É uma investida para que os olhares não se dispersem. Para conferir a eficácia de seus métodos, ela rabisca na lousa uma palavra com a grafia incorreta. Não passa nem um minuto até que uma garotinha interrompe a aula: “Professora, você escreveu continar em vez de continuar”. Missão cumprida.
A paulista Gislene, de 45 anos, reúne boa parte dos predicados de um bom professor. Apaixonada pela profissão, cursou o magistério exclusivamente para trabalhar em escola pública. Em 25 anos como docente, nunca deixou de frequentar cursos de aperfeiçoamento. Considerada exemplar pela prefeitura, Gislene coleciona bons resultados na escola Professora Ileusa Caetano da Silva, na Zona Oeste: sua classe mantém uma taxa de frequência de 90% e a totalidade de seus alunos é alfabetizada até o 2º ano (em São Paulo, 38% dos estudantes não aprendem a ler antes dos 8 anos). Nas três últimas avaliações usadas para medir o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), a escola bateu a meta estipulada pelo governo federal. Apesar disso, uma pichação no muro do estabelecimento resume em letras garrafais o sentimento de quem está ali para aprender: “Fuck school”.
Professores comprometidos como Gislene são uma raridade na rede municipal de ensino. A falta de incentivos para a formação, as salas de aulas abarrotadas e os baixos salários colocam a capital em 35º lugar no ranking da Prova Brasil, entre os 39 municípios da Grande São Paulo. Essa avaliação mede a qualidade do ensino público em português e matemática. “Hoje estamos no final do pelotão de trás”, afirma Cesar Callegari, secretário municipal de Educação. “Queremos estar no começo do da frente.” Para isso, a prefeitura anunciou uma grande reforma no ensino.
O plano acaba de passar por uma consulta pública (recebeu só 3 mil sugestões) e deve sair do papel já no começo de 2014. A mudança mais significativa está prevista para o ensino fundamental. Antes dividido em dois ciclos de aprendizagem, ele será agora quebrado em três ciclos (mais detalhes no quadro acima). Isso porque a mudança do 5° para o 6° ano é naturalmente complicada. Os alunos deixam de ter atenção de apenas um professor para lidar com um para cada disciplina, que entram na sala a cada 50 minutos. O volume de conteúdo aumenta. Muda o jeito de estudar. Com isso, os picos das taxas de reprovação e de abandono explodem no 6° ano. Para tornar essa transição mais suave, os professores especialistas ingressarão a partir do 4º ano, de maneira gradual. A administração também pretende incentivar a formação dos professores. Serão criados 31 polos da Universidade Aberta do Brasil nos Centros de Educação Unificados (CEUs).
Cerca de 3,5 mil docentes já estão sendo formados.O ponto de maior polêmica da proposta diz respeito à reprovação. Pelo sistema atual, o estudante pode ser retido só ao final de dois anos. Depois da reforma, poderá reprovar ao término de cinco anos. Boletim, tarefa de casa e provas bimestrais passam a ser obrigatórios. “Nosso objetivo é resgatar a autoridade do professor e multiplicar os sinais de alerta, não criar uma máquina de reprovação”, diz Callegari. Alguns especialistas discordam do método. “Insistir na reprovação, uma das maiores causas do abandono escolar, não é o caminho”, diz a socióloga Maria Helena Guimarães de Castro. O Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem) faz coro. “A proposta é conservadora, reacionária e não tem nada de substancial. O governo quer reprovar, mas não explica como dará condições para o aluno aprender”, afirma o presidente da entidade, Claudio Fonseca. Para que seja aprovada, a reforma da prefeitura ainda terá de passar por várias provas. A esperança é que, com ela, professores como Gislene não sejam exceção, mas regra em São Paulo.
Caminho mais curto até a universidade
Com mais de 7 milhões de inscritos, a pontuação de escola no Enem é um indicador da qualidade do ensino
Quando foi lançado, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tinha a tímida missão de avaliar o aprendizado. Reformulado em 2009, passou a ser feito em dois dias de prova, com 180 questões e uma redação. Ganhou assim a nobre tarefa de unificar o vestibular das universidades federais brasileiras. A edição de 2013 teve recorde de inscritos com mais de 7 milhões de estudantes; Quem prestou o Enem no ano passado poderá usá-lo em 101 instituições, 3,7 mil cursos e 130 mil vagas que aceitam o exame (em alguns casos, como parte da nota de avaliação).
Embora ainda não substitua totalmente o vestibular, o teste encurta o caminho até a faculdade – seja ela pública ou privada. A prova é hoje indispensável na disputa de uma das vagas oferecidas pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para estudar em instituições federais ou estaduais. É exigida também no Programa Universidade Para Todos (Prouni), que distribui bolsas de estudos em faculdades particulares a alunos de baixa renda. Garantir uma boa nota no Enem não é bom só para o aluno. Quanto maior a média dos estudantes, mais bem classificado é o colégio onde eles estudam. Entrar para a lista nacional das instituições mais bem colocadas sinaliza uma capacidade de ensinar acima da média. Apesar de ser apenas uma das muitas ferramentas de escolha, o ranking orienta os pais na hora de optar por uma escola que definirá o futuro dos filhos.
Com informações da Revista Época.